Final de ano e você já está montando aquela lista esperta do que valeu a pena e do que foi decepcionante; animes e mangás inclusos. No processo você percebe que afinal houve mais elementos na lista de decepção do que de surpresa. Por quê? Analisando o gosto amargo que algumas obras deixaram, é impossível tirar da mente o final sofrível e cagado que algumas séries carregam na sua trama que por humildade tiveram um início e meio satisfatórios. Conclui-se que os finais são uma peça importante para a lembrança cultural que elas deixam no seu consciente coletivo. E é exatamente nessa peça chave que obras de natureza comercial – a maioria animes de TV – pecam.
Desenhos chineses com garotas submissas fofas e ao mesmo tempo sensuais, organizações secretas cuja única esperança é um garoto ordinário alheio a todo o problema sócio-político – às vezes galáctico-político –, transformações desenvolvidas pelo simples uso da força de vontade ou sangue quente e sobretudo comédias e dramas sociais dos quais vivemos sem entender ou reclamando do dramalhão forçado. Esses são os clichês essenciais de todo anime oriental. E se você nunca viu um com algum desses componentes, considere-se um profano que ainda está para ser iniciado. Seja honesto consigo mesmo: qual foi o último anime ou mangá que você viu ou leu? O que achou, de verdade?
Se nenhum desses dois em que pensou mudou a sua maneira de ver o mundo, a sua vida, ou te fez refletir sobre as coisas que consome, terei que fazer o tempo de leitura desse texto ser válido para você.
É inevitável que eu me aproxime de um debate sobre o mérito artístico das mídias e a discussão de O Que É Arte, mas tentarei passar longe. Antes, quero falar das minhas três semanas sem internet. Quem visita o site diariamente ou acessa toda semana por algo de interesse, percebeu que de repente eu parei de escrever os comentários semanais de Shingeki, Nobunaga e Magi. Fiquei sem internet. Mas já se passaram as três semanas e continuo sem escrever os comentários. A internet já voltou. Isso acontece porque durante aquelas três semanas passei por uma sofisticação daquilo que consumo. A princípio imaginei que offline eu sucumbiria ao tédio e no ímpeto de me livrar da angústia que ele proporciona me suicidaria. Mas resisti, minto, aproveitei! Guarde o que eu falo: baixe tudo o que você consome da internet. Se você vê/lê coisas online, uma hora a sua net vai te trair e não tem um amigo que vai compartilhar DVDs ou livros raríssimos de encontrar para te ajudar. Em horas emergentes assim, ter conteúdo baixado da net para ver a hora que quiser vem a calhar. E eu tinha diversas coisas no meu computador quando isso ocorreu, desde HQs brasileiras até filmes franceses. Nesses 22 dias eu mesmo me apresentei a uma cultura que estava ao meu lado mas a ignorava por preconceito e desapego ao espírito nacional e circunvizinho. É patente pessoas daqui do Brasil – principalmente – fazerem pouco caso da cultura conterrânea – eu era assim inclusive. A idolatria com a cultura japonesa, seja só com o conteúdo de entretimento – animes e mangás – ou um interesse mais weeaboo como pela linguagem, a moda e a cultura em geral, é um pensamento inerente dessa ideologia de antipatriotismo. Não quero julgar ninguém, mas a maioria dessas pessoas são aquelas que têm medo de arriscar em algo que não sabem se é bom ou ruim e nunca experimentaram. Só de dar a qualidade a um produto como “do Brasil”, “de um brasileiro”, muitos tornam um passo atrás. Antes já foi mais, hoje nem tanto, mas ainda acontece.
Finalmente, resulta-se numa frustração dupla onde o estrangeiro finge que entende a cultura japonesa e os japoneses são gentis para não revelarem a mancha de sangue marcada na bandeira. Pelo desentendimento entre as culturas é natural que uma arte que teve um processo criativo totalmente inverso de onde o entusiasta nasceu permanecerá na margem do sentir incompleto, pois ele não foi enraizado naquela sociedade e suas crenças não são autênticas como a daquele povo, para sentir o mesmo que eles sentem. Reconhecer e aceitar que jamais partilhará do mesmo espírito e sangue histórico de outrem é um passo para entender o seu lugar no mundo. Anime não é feito para nós, isso já é sabido por todos vocês! Por isso pare de reclamar do jeitão efeminado dos protagonistas asiáticos, pare de se irritar com a resolução do poder da união e amizade, pare de reclamar das garotas submissas!
Descobri que os artistas na Austrália estavam profundamente conscientes do imperialismo cultural, talvez porque o povo deste país tenha tido de lutar para criar sua própria sociedade. Eles forjaram algo diferente da Inglaterra, independente da América e da Ásia, influenciado por todos eles, mas singularmente australiano, e intensificado pela misteriosa energia da terra e do povo aborígines.
[…] Por exemplo, a preferência hollywoodiana por finais felizes e soluções metódicas, a tendência em mostrar heróis virtuosos e admiráveis vencendo o mal pelo seu próprio esforço. Meus professores australianos me ajudaram a ver que tais elementos podem fazer boas histórias para o mercado mundial, porém talvez não reflitam as visões de todas as culturas.
— A Jornada do Escritor, Christopher Vogler
O Brasil é um país muito influenciado pela cultura americana e isto “macula” as nossas raízes tupiniquins. De certo modo, não gostar de coisas nacionais é só uma consequência dessa lavagem cerebral.
O consumidor pensa que está torcendo pelo herói certo, está reclamando por razões justas e na verdade ele quer algo, outra coisa, mas que só sabe inconscientemente. Ele quer um herói que compartilhe de suas angústias, quer um desafio que seja estimulante e o tire do cotidiano, quer uma provação a qual ele poderá se ver no herói e reafirmar-se como alguém que é tão capaz quanto ele. Mais que serem surpreendidas em ficções, qualquer pessoa de qualquer cultura quer ser transformada. Essa transformação ocorre de maneira microcósmica ou macrocósmica. Há casos e casos: os mais pertinentes são as micros onde a pessoa sai sabendo sobre o mundo mais que ela sabia antes ou pensa de maneira diferente quando iniciou a jornada – começou a ler/ver a história; as macros são aquelas que tratam da própria condição humana e por haver uma mudança de dentro para fora, o indivíduo muda a sua percepção de mundo não por ter descoberto algo novo sobre ele porém sobre si mesmo que acaba refletindo nos seus circunspectos. Isso remete ao conto do Herói que sai de seu lar, triunfa na terra desconhecida, obtém o segredo libertador e retorna ao lar mudando a tudo e todos. E estas transformações só ocorrem quando ou o Herói narrado regressa com uma lição nacional ou uma lição universal a qual independe da cultura. Uma metáfora alusiva é a seguinte, na micro há um detalhe imperceptível que você consegue perceber depois que se transforma; na macro há um segredo seu sobre você mesmo onde te é revelado por outra pessoa e vocês descobrem que partilham do mesmo segredo, levando a empatia com o outrem e sobretudo ao autoconhecimento humano.
Além disso, se pudéssemos recuperar algo esquecido, não apenas por nós mesmos, mas por toda a geração ou por toda a civilização a que pertencemos, poderíamos vir a ser verdadeiramente portadores da boa nova, heróis culturais do nosso tempo — personagens do momento histórico local e mundial. Numa palavra: a primeira tarefa do herói consiste em retirar-se da cena mundana dos efeitos secundários e iniciar uma jornada pelas regiões causais da psique, onde residem efetivamente as dificuldades, para torná-las claras, erradicá-las em favor de si mesmo (isto é, combater os demônios infantis de sua cultura local).
[…] O herói, por conseguinte, é o homem ou mulher que conseguiu vencer suas limitações históricas pessoais e locais e alcançou formas normalmente válidas, humanas. As visões, ideias e inspirações dessas pessoas vêm diretamente das fontes primárias da vida e do pensamento humano. Eis por que falam com eloquência, não da sociedade ou da psique atual, em estado de desintegração, mas da fonte inesgotável por intermédio da qual a sociedade renasce. O herói morreu como homem moderno; mas, como homem eterno — aperfeiçoado, não específico e universal —, renasceu. Sua segunda e solene tarefa e façanha é, por conseguinte (como o declara Toynbee e como o indicam todas as mitologias da humanidade), retornar ao nosso meio, transfigurado, e ensinar a lição de vida renovada que aprendeu.
— O Herói de Mil Faces, Joseph Campbell
A questão da qualidade de uma série está objetivamente atrelada à identificação do indivíduo com os dilemas e problemas do personagem, o Herói em específico. Os heróis de animes infelizmente não fazem parte de nossa cultura e por isso não compartilhamos de seus demônios, portanto, séries que possuem a proeza de nos fazer refletir, mudar nosso jeito de vê o mundo e por fim, nos transformar, são obras raras atemporais cujo o tema principal é o ser humano e por isso carregam lições universais. Essas sim são as artes que seja onde for que esteja ela te causará alguma inquietação inexorável, o resto é somente entretenimento de comida rápida que serve para “passar o tempo” que também é traduzido como “perder tempo”.
otimo texto!
realmente é algo muito recorrente ver pessoas reclamando de animes e mangas sobre pontos que diferem da nossa cultura, as vezes eu não sei nem como dialogar. as vezes voce precisa de uma certa carga cultural ou historica para entender certas obras, o que pega muita gente desprevenida.
porem é um fato que boa parte das obras jaonesas sofrem com a falta de planejamento de final.
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“porem é um fato que boa parte das obras jaonesas sofrem com a falta de planejamento de final.”
sem dúvida. não podemos confundir temática e aspectos culturais embutidos com abordagem mal feita. soluções fáceis e apelações são soluções fáceis e apelações em qualquer lugar do mundo, e não há diferença geográfica que aguente.
no mais, bom texto. que sua internet caia mais vezes, rs.
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Amei o texto! Estou aqui aplaudindo kkkk Eu msm tenho uma amiga q adora o Japão e acha praticamente quase tudo do Brasil um lixo. Chega a dar raiva ‘-‘
Com o passar do tempo eu tenho conseguido ver os animes e mangás de uma maneira diferente, e hoje em dia procuro principalmente histórias com mais profundidade, mas claro não deixo de assistir os outros,nem que seja pra depois me decepcionar com o final kkkkkk
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Na parte “os japoneses são gentis para não revelarem a mancha de sangue marcada na bandeira” acho que essa parte me fez lembrar de uma coisa que tenho percebido nos últimos animes que tenho visto , o caso dos animes e mangas botarem seus “antonistas históricos ” como seus vilões em certas obras
tava vendo Jormungand e mahouka koukou no rettousei , é cara como esse povo guarda ressentimento da segunda guerra , não querendo tomar lados acho que todo mundo foi escroto naquela época ,uns mais que outros , não que a mídia Americana e as outras não façam o mesmo com eles no cinema , por isso gosto da primeira temporada de gundam 00 , todas as 3 nações são oportunistas e maquiavélicas , ah tem um protagonista do oriente médio.
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Sim, esse lance das consequências da SGM é algo característico do Japão, ainda mais que eles foram vítimas da bomba atômica. Se vê isso em clássicos como Godzilla e o mangá Akira. É até lógico porque é um ressentimento exclusivo deles, algo que a cultura pode se identificar. Pra nós estrangeiros é estranho e até incompreensível em certa medida.
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Acho que isso de começar a “selecionar” animes e mangás e gostar cada vez menos dos estereótipos vem com o tempo. Hj tem certas coisas em anime que não suporto mais e outras que ainda curto.
A questão da cultura acho bem interessante (apesar de não gostar de mta coisa) já que é uma oportunidade de ver como funciona “o mundo” dos japoneses. Claro que é demais afirmar que assistindo animes e lendo mangás você irá entendê-los, mas pelo menos, se prestar atenção, vai ver como as coisas funcionam (e nunca desejar morar no Japão).
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Muito bom o texto. Ele deixa claro algo que deve ser percebido por todos. Cada obra é resultado dos aspectos socioculturais envolvidos e das aspirações (digo características psicológicas) do autor. Os mangás/anime refletem o ideário da cultura japonesa, igualmente às obras nacionais que refletem aspectos da cultura brasileira. Um japonês provavelmente ficaria horrorizado ao assistir Tropa de Elite e dificilmente entenderia mensagens como “a razão do treinamento dos caveiras ser tão cruel” ou “a hipocrisia nos protestos dos playboys que são os mesmos financiadores do tráfico”, ou “a agressividade praticada pela sociedade que acaba se voltando contra ela mesma”. Em Hollywood, o adultério é quase um tabu, e nos filmes um casal que se separou por traição dificilmente volta. Já no longa nacional “Os Três”, uma garota divide a cama com dois caras e o trio convive na boa. São produtos culturais diferentes para grupos de pessoas diferentes. Ao consumi-los, é preciso ter isso em mente. De um modo geral, existe uma importação de padrões externos. Assistimos filmes, lemos livros e jogamos games estrangeiros. Todos formados sobre a visão de um artista estrangeiro e nos moldes da cultura estrangeira. Não comemoramos o Halloween, e nem o dia de ação de graças, mas isso é inserido em nossa cultura com base nas obras culturais que consumimos. Em contrapartida, surgem as obras nacionais trazendo à tona a realidade brasileira. Não estou dizendo que devemos desprezar a cultura estrangeira e venerar a cultura BR. Devemos saber apreciar os dois lados e ter conhecimento de que são duas coisas distintas, se não teremos jovens brasileiros tirando o sapato ao entrar dentro de casa, ou jovens japoneses se cumprimentado com beijinhos, por exemplo.
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